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ARNALDO JABOR

Eu já vi o medo da América profunda

 

A “geração silenciosa” dos anos 50 acordou agora com Bush
Eu já morei nos USA, antes dos anos 60, no coração da “América profunda”, em Saint Augustine, Florida. A cidade era igual aquela do “Truman Show”. As ruas, pessoas, rituais, sorrisos e lágrimas, tudo parecia programado por uma máquina social obsessiva. A vida e morte eram padronizadas, previstas: abraços gritados, roupas iguais, torcidas histéricas no baseball, finais felizes, alegrias obrigatórias, formando uma missão comunitária cheia de fé, como um carrossel de certezas girando para um futuro garantido.
Só uma coisa estava fora da ordem: os negros. Era outra América dentro da cidade. No ônibus amarelo do colégio, eu via meus colegas louros, ruivos e brutos berrando contra os negros que passavam: “Hey, “nigger”, por que teu nariz é tão chato? Hey, “nigger”, por que teu cabelo é pixaim?” Os negros passavam, de cabeça baixa, o rosto torcido de humilhação, num ódio sufocado e inútil. Amontoavam-se no fundo dos ônibus, em pé, mesmo com os carros vazios e moravam num bairro de madeira e terra, perto do braço-de-mar onde os barcos pesqueiros de camarão fediam. Aquela injustiça me espantava pela ausência total de compaixão, eu que vinha de babás negras me beijando, eu que amava as mulatas cariocas lindas que já povoavam meus desejos aos 15 anos. Eu só via gente negra moldada pelo sofrimento e exclusão, disformes, tristes, obesos deprimidos, frágeis mulheres engelhadas, pretos trêmulos e esfarrapados. Anos depois, na época da “integração racial”, vi os mesmos negros sendo espancados pela ousadia de se banhar em piscinas publicas, onde aqueles brancos do meu passado jogavam ácido para queimá-los.
Eu tinha medo era dos brancos. A violência dos alunos me assustava. Eu era um “nerd” comprido e meio bobo nos meus 15 anos de virgindade e me chocava com as botas de cowboy marchetadas de estrelas de prata, as facas de mola de onde a lâmina pulava, os casacos de couro negro que já vestiam a chamada “juventude transviada”, uma rebeldia reacionária e “republicana” dos anos de Eisenhower. Vi brigas de ferozes galalaus se arrebentando até o sangue no focinho e o desmaio, onde nem os diretores do colégio podiam interferir, por causa do sagrado direito da porrada da cultura de vaqueiros e pioneiros.
Os ídolos da época eram Elvis Presley rebolando na TV e James Dean, cadáver presente nos gestos e roupas. Pairava um clima de intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os fracos, eram as meninas bonitas contra as feias, eram as sérias contra as “galinhas”. As rivalidades eram explicitas, vingativas e duras. As “galinhas” eram comidas e desprezadas nos “drive-ins”, dentro dos carros envenenados e depois cuspidas para a humilhação coletiva.
Eu, turista tropical, era um tipo misterioso; tímido, fraco, mas, como era estrangeiro e falava bem inglês, provocava um respeito cauteloso e os machões me poupavam pela incrível habilidade que eu tinha de dar-lhes “cola” em “spelling”, soletrando longas palavras de raiz latina que, para eles, eram enigmas.
Algumas meninas saíram comigo para beijos na boca e nada mais, claro. Mas, Emily me descurtiu quando cantei “Misty” em seu ouvido, trêmulo de paixão. Brenda, mais pirada e sexy, me largou e sumiu com Warren Caputo italiano mau que tinha um “hot rod” com pneus de trator. Eu não era “legível” para eles. 
Existia no ar um perigo desconhecido. Não havia espaço para dúvidas naquela cidade, mas dava para sentir que aquela solidez de certezas, se rompida, provocaria um grave desastre. Os tipos cultivavam diferenças, mas havia uma cola invisível que unia o maluco, a galinha, o careta, o otário e o machão nos juramentos solenes à bandeira no colégio.
Eu, bem ou mal, navegava no meio daquela cultura obsessiva, bem ou mal eu conseguira namorar Melinda Mills, loura pálida filha de um ex-marine que tinha estado no Rio muitos anos antes e que me mostrou um cartão postal do Mangue, onde ele certamente conhecera a Zona e as polacas. Melinda me amava, ela também frágil e boba, com beijos molhados no cinema onde assistimos “An Affair to Remember”, os dois chorando abraçados.
Até que um dia, chegou a noticia terrível. Tinha subido aos céus o satélite russo, o “Sputnik”, girando como uma bola de basquete em órbita da Terra. Foi indescritível o pânico na cidade. Desde 49, quando a Guerra Fria começou, com a explosão da bomba H pelos soviéticos, destronando a liderança dos destruidores de Hiroshima, os americanos esperavam outra catástrofe, que viria quase como um filme de ficção cientifica como a “A Invasão dos Feijões Gigantes”. Em minutos, a cidade parecia um campo de refugiados, de perdedores, com cabeças inchadas, humilhados pelos comunistas invasores. No colégio, começaram “fire drills” incessantes, alarmes evacuando os alunos para porões e abrigos atômicos. O então senador Lyndon Jonhson berrou: “Brevemente estarão jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras caindo do céu...”
No alto, o satélite Sputnik humilhava os americanos, com seus “bip bips”, ameaçador como gargalhadas de extraterrestre. A partir desse dia, lá em baixo, na cidadezinha da Florida, eu mudei. Não para mim, mas para os outros.
Os colegas porradeiros me investigaram com perguntas: “Que você acha? Teu país gosta dos russos?” Eu tremia e escondia minha vaga admiração juvenil pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados: brasileiro, latino, sabe-se lá? Depois disso, não me pediam mais cola de palavras, mal me olhavam. O pai de Melinda, putanheiro do Mangue, mal me cumprimentou de sua poltrona esfiapada. Melinda ficou mais pálida e nosso namoro definhou. Há 47 anos, eu vi o “choque e pavor” da América profunda. Nessa época era a “silent generation”, passiva e frágil. Não agiam. Não havia ainda o “totalitarismo da maioria”. Mas, já era o mesmo medo que agora Bush e sua gang estimularam e transformaram em arma violenta para mudar o mundo numa aldeia
evangélica e reprimida.

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