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ARNALDO JABOR

"Chiquérrimo" quer educar ricos e famosos

 

O livro de Glória Kalil é um manual de boas maneiras num tempo grosso

 

Li o livro de Glória Kalil, "Chiquérrimo", e meus olhos mudaram. Eu não sou chique, mas queria ver quem era. Botei uma bermuda amarela e saí por aí, levando uma "cachorra" pela mão, com ela se equilibrando em cima de um par de plataformas douradas, com a calça bem justinha de modo que sua bunda fosse uma espécie de terceira pessoa a nosso lado, a bundinha ali, atual jóia maior de qualquer mulher, entramos num restaurante metido a besta e resolvi mostrar que sou tão chic quanto aqueles babacas ali. Comecei dando logo um esporro no garçon que me ofereceu o menu e eu perguntei: "O que se come de bom por aqui?" E ele me disse com as narinas pálidas: "De tudo, senhor".  "Ah, tem de tudo? Então me traz  rã com bertalha!", berrei olhando para os lados, e vários senhores chiques desviaram os olhos, mas a minha "cachorra" riu  bem alto, para alegria dos chics que puderam olhar sua bundinha mais calmamente. Aí,  eu fiquei meio invocado e já iamos começar a discutir a relação, quando o meu celular tocou. Claro que era o Zé da Ilha que começou a me encher o saco e eu então berrei, para que todos ouvissem: "Dinheiro, meu filho, não me falta... graças a Deus, agora que vendi minha casa lotérica eu quero é ser chic!" Eu era o escândalo do restaurante. De propósito, pedi logo champagne e caviar e minha "cachorra" chegou a cantar a música do Zeca Pagodinho: “vocês sabem o que é caviar, nunca vi nem comi eu só ouço falar!”. Aí, eu fiquei olhando a turma ali daquele boteco chic. Quem disse que eles eram mais chiques do que eu? Eu nasci na "perifa" e continuo lá, mas dava para ver a caretice dos mauricinhos em volta.

 

Notei que ninguém prestava atenção em ninguém. Vi que o principal problema dos chics falsos é que eles não vêem ninguém a não ser eles mesmos, e como ninguém vê ninguém, era aquela solidão...

 

Saí pelas ruas, restaurantes, lojas, teatro, "lounges" e vi. Vi os sorrisos deslumbrados das botocudas (de Botox) entrando no bar fazendo bico com os lábios para realçar os "botoxinhos", triunfantes princesas de um império invísivel, acompanhadas de barrigas e bigodes, vi o rápido flash da gorgeta-quase-suborno de um gordo para lhe arranjarem a mesa da janela, vi o olho do garçon grato e envergonhado e vi sorrisos... Todo mundo sorrindo, bocas abertas, dentes, dentes, ninguém quieto, todos sorrindo para fotógrafos, vi os risos para esconder o medo e vi o medo por trás dos risos como uma epidemia de síndrome de pânico gargalhante, não vi a displicência chic que invejo nos fleugmáticos, só vi olhos buscando reconhecimento, vi a vaidade vicejando em cada rosto, ninguém via ninguém e todos eram vistos só por mim, vi as pernas douradas das peruas, cobertas de sedas e jóias, vi que o "ancien regime" continua vigente, que suas toalettes rococós são remotas lembranças de uma imaginária monarquia cafona, vi duquesas de lycra, baronesas de silicone, condessas pop com tatuagem na bunda e correntinha no tornozelo, todas competindo com as putinhas, vi que minha "cachorra" queria ser perua e as peruas queriam ser "cachorras", vi as cirurgias reparadoras, bigodes pintados, cabelos acaju, vi pochetes de dois mil dólares, bolsas de 3 mil, Vuittons falsas, Pradas fajutas, vi meias brancas em sapatos pretos e meias pretas vice-versa, vi verdes "fines herbes" entre dentes recém-capeados, vi zíperes de calças abertos, vi peitos para fora do soutien, sincronizados com gritinho de falso pudor, vi frases que nem eu, cafajeste de carteirinha, diria, vi um gordo falando que tinha trocado uma mulher de 50 por duas de 25, vi peitos abertos com colares de ouro em cascata, vi blazeres com brasão de almirantes, vi cabelos implantados como canteirinhos de piaçava, vi unhas grandes no dedo mindinho e vi a chegada das celebridades, invadindo as casas, os teatros, como trens barulhentos, gargalhando, luzindo sob os flashes e sempre furando filas, nariz para cima, os caninos brancos rindo para os fãs caninos, de caneta na mão com guardanapos úmidos pedindo autógrafos, vi o misto de desprezo com vaidade das celebridades dando autógrafos como bênçãos divinas, vi os casamentos de atrizes durarem duas semanas, entre duas edições de "Caras", vi roupas de onça, de zebrinha, de tigre e de dálmata, vi barrigas de cervejudos, vi garçons humilhados por banqueiros de cabelo sujo, vi metrossexuais querendo ser homossexuais sem ter coragem, vi maus-hálitos, excreções, rebotalhos, flatulências, eructações, babugens, oleosidade em caras tensas e a angústia aparecendo nos sovacos das camisas de seda, vi gargalhadas ocultando falências iminentes, vi corruptos sendo saudados como heróis nas churrascarias entre picanhas e chuletas e vi honestos sendo humilhados pelas esposas por pouco dinheiro, vi braceletes falsos, dentes falsos, risos falsos, bundas falsas, ricos falsos, vi casais se odiando diante do prato, vi caras amarradas, mulheres falando como crianças, ostentando fragilidades sedutoras, vi piadas de mau gosto com gargalhadas e perdigotos, vi bêbados caindo sobre bêbadas, vi paparazzi entrando na porrada com câmeras quebradas, vi porteiros puxa-sacos com rostos transidos de rancor, vi jantares, óperas, coquetéis, comemorações oficiais, vi casamentos comandados por peruas de walkie-talkie, vi noites de gala, bailes, premiações.

 

Afinal pensei: o que é ser chiquérrimo? Na dúvida voltei para a "perifa", pro boteco do Zé da Ilha. Lá tem pagode, tem até crime, mas há uma educação pobre, uma delicadeza popular que não vi na cidade. Entendi o que Glória Kalil diz no livro dela: Chiquérrimo é aquele sujeito que respeita os outros, que valoriza a amizade, o amor, a beleza, que quer ser amado, mas não força a barra. Glória Kalil ensina em seus livros: equilíbrio, harmonia, um convívio respeitoso e feliz. Glória tem uma utopia: educar a burguesia. Não sei se consegue, mas seu livro nos ensina que, mal-empregada, até a elegância pode ser uma forma de violência.

 

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